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Exames Nacionais: da ilusão dos números à análise política (Parte 1)

Chocolate Brás
8/7/2024
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Cedida pela fonte

O contexto político e ideacional é marcado pela adoção mais forte por parte do governo dos postulados da Nova Gestão Pública, praticando um Estado mínimo na educação.

O Ministério da Educação de Angola (MED) tem vindo a implementar desde o ano letivo 2021-2022 a Avaliação Nacional das Aprendizagens (ANA) que é um processo de avaliação externa, em larga escala. Neste sentido realizou no letivo 2022-2023 os Exames Nacionais Piloto (ENP) cujos resultados foram publicados em maio do corrente ano civil. Este artigo de opinião pretende subsidiar a análise de tais resultados, de modo que a análise política das suas implicações seja menos ingênua. Para tanto, considera ser necessário compreender o contexto institucional, político e ideacional em que a ANA foi proposta, uma vez que a proposição de um programa educacional segue as regras institucionais, é cercado por debates nas estruturas governamentais, parlamentares, influenciados pelas disputas, pressões e induções de diferentes atores políticos nacionais ou internacionais. De outro lado, defende ser necessário olhar para a planificação e execução dos exames, seus principais resultados e suas implicações na gestão do sistema educacional. 

Assim, como ponto de partida se pode questionar em que contexto a ANA foi assumida como uma medida de política da educação em Angola e que atores terão influenciado ou induzido tal proposição. Em relação ao contexto, a situação socioeconômica e política é marcada na generalidade por déficits de governança, incapacidade do Estado em manter a segurança pública e alimentar, dificuldades em garantir as necessidades essenciais aos seus cidadãos, tomada de decisão opaca por uma pequena elite, pobreza extrema, polarização política, desrespeito aos direitos humanos e garantias fundamentais dos cidadãos, gerando uma erosão da confiança dos cidadãos no Estado, caracterizando o país como um Estado frágil, tornando-o dependente de agendas de organismos internacionais para a materialização das suas políticas educacionais. 

Ao nível educacional, a situação é mais crítica, registrando-se que menos 15% das crianças em idade pré-escolar têm acesso as creches e jardins-de-infância, sendo que 85% da rede deste nível de ensino é controlada por agentes privados. No ensino primário, mais de 2 milhões de crianças não obtiveram a matrícula por insuficiência de salas de aulas e mais de 90% dos alunos vai à escola a pé, percorrendo em média mais de 4 Km para chegar à escola mais próxima de sua residência. Ademais, dados do mapeamento das escolas públicas indicaram que 28% dos professores que atuam nas escolas públicas não tem a formação requerida para o exercício do magistério e que 47% dos diretores de escolas têm apenas o ensino médio concluído. Os dados do mapeamento geram maior insatisfação quando se referem ao saneamento básico, pois 81,6% das escolas não possuem acesso à eletricidade, 66% não possui acesso à água e 59,7% não tem casas-de banho funcionais, tendo 61% dos alunos habitualmente feito defecação em céu aberto. 

Sala de aulas em Angola

O contexto político e ideacional é marcado pela adoção mais forte por parte do governo angolano dos postulados da Nova Gestão Pública, praticando um Estado mínimo na educação, no qual o Estado esvazia o seu papel do provedor da educação como um direito social e bem-público como previsto no texto constitucional, e reforça em contrapartida a responsabilidade das famílias no financiamento da educação, com a fixação de propinas, taxas e emolumentos no ensino básico e superior, desde 2020, alterando assim o sentido do princípio da gratuidade e da intervenção do Estado da Lei de Bases do Sistema Educacional. Paralelamente, regista-se uma intervenção mais forte dos organismos internacionais na educação em Angola, tendo a Unicef, Banco Mundial e a União Europeia a atuar a nível de financiamento, enquanto a Unesco destaca-se como uma 2 instituição indutora das políticas, através da produção de dispositivos reguladores e de governança para elas, por via de seus relatórios e fóruns mundiais. 

Assim, a realização da ANA confirma uma tendência que se vai verificando ao nível global, destes organismos internacionais estabelecerem o paradigma da educação, criando uma modelagem de aprendizagem à escala global. Essas organizações têm vindo a organizar fóruns e publicado relatórios globais de desenvolvimento que habitualmente colocam foco nos países da periferia, ou países em desenvolvimento. Exemplo disso, em 2011, o Banco Mundial (BM) publicou o documento “Aprendizagem para Todos: Investir no conhecimento e nas competências das pessoas para promover o desenvolvimento”, em que apresenta perspetivas que indicam uma tendência de pobreza dos resultados escolares. Nessa estratégia do BM para o decénio 2010-2020, coloca-se o foco na aprendizagem e apresenta a necessidade de se fazerem avaliações mundiais para garantir, de facto, um conhecimento sobre o ponto de situação das aprendizagens. É neste sentido que foi criado o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) que faz avaliações trianuais do desempenho de estudantes em disciplinas capitais, tais como línguas, matemática e ciências, para analisar e situar os países por níveis/escalões de “desempenho escolar”. 

No entanto, é importante considerar que o conceito de aprendizagem adotado pelo BM, conforme sugere a literatura em políticas educacionais, reflete uma visão restrita ao focar apenas em aprendizagens mínimas, isto é, competências básicas necessárias para a sobrevivência. Nessa abordagem, o ensino e, consequentemente, a aprendizagem, são muitas vezes reduzidos a meras habilidades e competências. 

É neste contexto que surgem os Exames Nacionais em Angola, cuja fase 2 (generalização) decorre neste ano letivo, com aplicação na 6ª, 9ª e 12ª Classes, no mês de junho. Dito de outro modo, estes exames podem representar o desejo de Angola se enquadrar no PISA, sem se preocupar com o contexto, com as dificuldades e as incapacidades institucionais, sinalizando igualmente o ajustamento do país às agendas globalmente estruturadas para a educação, intermediadas pelo mecanismo de regulação supranacional, potenciado pelos organismos internacionais, em face a incapacidade estatal de suportar os custos com a educação. 

Na sequência, se podem questionar elementos referentes à planificação e execução dos exames, seus principais resultados e suas implicações para a gestão do sistema educacional, cabendo as seguintes notas: 

1. Dificuldades na planificação e gestão do processo.

A questão da capacidade institucional dos técnicos do MED é mais uma vez evidenciada considerando que os ENP foram realizados numa altura em que estavam a decorrer outros testes regulares nas escolas, o que terá influenciado os resultados. Assim, é importante salientar que a ANA enquanto medida de política educacional demanda um debate científico e técnico, devendo envolver e/ou resultar de estudos de especialistas da área, não sendo uma ação “iluminada” que qualquer burocrata do ministério faça, pois se configura em um instrumento de avaliação das políticas, processos e práticas educacionais na esfera do Estado. Ademais, não é um processo que se realize às pressas e sem adequada preparação técnica, científica e operacional. 

(Continua)

Aceda aqui à segunda parte deste artigo.

*Texto escrito segundo a versão brasileira do português na versão original do texto

Curitiba/Brasil, Chocolate Brás (Pesquisador de Políticas Educacionais)