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Exames Nacionais: da ilusão dos números à análise política (Parte 2)

Chocolate Brás
8/7/2024
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Foto:
Cedida pela fonte

Reiteramos o nosso receio de se produzirem apenas dados estatísticos que estratifiquem os alunos por escalões, potenciando apenas o ranqueamento das escolas.

2. Metodologia de execução dos exames. 

A questão da seleção da amostra constitui o primeiro indicador para uma observação cuidadosa deste processo, pois de acordo o MED foi escolhido uma amostra aleatória, que no nosso entendimento tende a ignorar a condição socioeconómica dos alunos, ao colocá-los num mesmo nível na régua, ou seja, alunos de diferentes escolas, de diferentes contextos socioeconómicos fazem o mesmo exame, não importando o tipo de escola, a situação familiar, insinuando-se que se todos têm o mesmo ponto de partida. A realidade, entretanto, sugere claramente a existência de alunos nas escolas do Ensino Primário públicas com inúmeras dificuldades de alimentação, de acesso aos materiais escolares, uma vez que apesar de formalmente serem de distribuição gratuitas, eles são vendidos no mercado informal, de alunos atendidos por professores sem formação adequada, de alunos de escolas sem os indicadores do saneamento básico. Esses pontos de partida socioeconómicos que foram ignorados com esta metodologia, poderiam inclusive permitir ao MED ter uma noção do impacto da condição socioeconómica dos alunos no seu aproveitamento escolar, gizando medidas de política para resposta. 

De outro lado, se impõe olhar para a distância entre o programa projetado e a programa implementado no terreno. Chama a nossa atenção o percentual de alunos avaliados versus o percentual de alunos projetados. Ao se deparar com os números, nota-se claramente que a realização dos ENP foi uma tentativa frustrada, que ao nosso ver não se fez as devidas análises que por esta razão tivemos tais resultados, tanto é assim que a taxa de participação se fixou em 54%. Os exemplos das províncias de Moxico e de Benguela merecem maior atenção. No Moxico se previu avaliar 2.460 alunos, dos quais somente 700 foram avaliados (menos de 30% de participação) por sua vez, na província de Benguela de 6.500 alunos previstos apenas 2.000 foram avaliados (menos de 35%). 

Pensamos que o MED deve informar com transparência o que aconteceu. Deve ainda ser capaz de ir além das estatísticas, fazendo uma análise mais qualitativa do processo e disponibilizar ao público indicadores para estudos, discussão e análise política. Atualmente se tem verificado que a discussão a educação tende a se restringir na ideia da qualidade educativa (como buscar melhores resultados escolares) relegando a discussão sobre a equidade (como diminuir as desigualdades sociais) em último plano. As autoridades educacionais angolanas devem compreender que a educação não se limita as aprendizagens; as questões socioemocionais e outras do processo educativo que transformam o aluno em ser humano-histórico devem ser valorizadas. 

3. Disciplinas avaliadas

As autoridades do MED entenderam realizar o ENP nas disciplinas de Língua Portuguesa (LP) e Matemática (MAT), “obedecendo” o escopo definido pelo BM, OCDE e Unesco, como disciplinas de maior “crise da aprendizagem” a nível global. Essa opção, ao nosso ver desconsidera o contexto socioeducacional angolano, uma vez que para a maioria das crianças da 4ª e 6ª classe que foram avaliadas, a LP não se constitui em língua materna, isto é, língua primeira. Este lugar é das línguas nacionais, sobre as quais o governo angolano tem apresentado nenhum interesse em integrá-las no currículo da educação formal, haja vista que Angola historicamente tem se afirmado como uma das poucas realidades do globo em que uma criança vai para a escola para um processo de aculturação, e que o sistema educacional seja apenas um sistema de alienação, desvalorizando os saberes locais, de modo que a educação considere nos seus processos e práticas as condições antropológicas, sócio-históricas e políticas da pessoa angolana. Nos parece que a “pobreza dos resultados” em LP e MAT, que em termos 4 percentuais chegam a 20% para casos da LP, e a 11%, por exemplo, para casos de MAT podem refletir essa condição. A compreensão matemática é tem sido apontada como parte de uma compreensão linguística, ou seja, se os alunos não têm a LP como a língua primeira, terão certamente dificuldade de trabalhar com a matemática. Podemos deste modo, considerar um erro procedimental do MED ao não considerar o contexto etnolinguístico dos alunos abrangidos. 

Sala de aulas em Angola

4. Resultados dos exames e suas implicações. 

A resposta para a pergunta “Para que servem os Exames Nacionais?” no nosso entendimento perpassa a ideia segundo a qual servem para avaliar o conhecimento dos alunos em disciplinas “importantes” como Língua Portuguesa, Matemática, Ciências [...]. Deve igualmente permitir analisar o impacto do contexto institucional, político e ideacional das políticas e programas educacionais, bem como servir de um dos pontos no processo de definição da agenda das políticas públicas do setor da educação. 

Os resultados em números dos ENP publicados pelo MED indicam “taxas de sucesso de 22% nos exames de Língua Portuguesa e Matemática, para a 4ª Classe; de 32% na Língua Portuguesa, para a 6ª Classe, enquanto para a Matemática se cifrou em 28%”. Portanto, os rendimentos escolares nestas duas classes de fim de ciclo do Ensino Primário nas duas disciplinas julgadas “muito importantes” para a vida dos alunos em média não vão além dos 32%. Isso é estatística (números e indicadores) que podem servir para a análise crítica da política feita por técnicos estatísticos da educação, de modo a compreender o que significam estes resultados e que implicações podem ter. Ademais, esta estatística podia ser tomada pelos Centros de Investigação das universidades como uma janela para estudar o processo de ensino-avaliação-aprendizagem nas escolas do Ensino Primário. 

Em síntese, partir para a generalização dos Exames Nacionais sem ir além destas estatísticas agora publicadas não nos parece garantir que os resultados tenham alguma implicação na proposição de políticas e programas educacionais, sinalizando que estaríamos a dar continuidade a um processo sem retorno e sem lições aprendidas. É nosso entendimento que esses resultados deveriam implicar no repensar da organização, gestão e funcionamento do próprio sistema educacional, para pensar as condições das escolas que devem perpassar o conceito de salas de aulas, abrangendo assim espaços pedagógicos como laboratórios, para pensar a condição socioeconómica dos alunos e formas de assistência estatal (alimentação escolar, transporte escolar, materiais escolares gratuitos), para uma melhor formação inicial e em serviço dos professores. Ou seja, esses resultados não podem morrer na estatística! Têm de ser tomadas medidas de política para que, de facto, esses resultados tenham alguma implicação. 

Para finalizar, reiteramos o nosso receio de se produzirem apenas dados estatísticos que estratifiquem os alunos por escalões, potenciando apenas o ranqueamento das escolas, em detrimento de informações para melhorar a situação delas, uma vez que o foco parece estar na produção de números para o mercado, ignorando a ideia segundo a qual a questão central das políticas educacionais é saber como se deveria educar os cidadãos, com que condições e por quê [...].

(Fim!)

Aceda aqui à primeira parte deste artigo.

*Texto escrito segundo a versão brasileira do português na versão original do artigo

Curitiba/Brasil, Chocolate Brás (Pesquisador de Políticas Educacionais)